sexta-feira, 15 de junho de 2012

A Seca

Seca Verde - Desenho de Sandra Maria de Aguiar Coelho

Um cheiro de vômito exala-se no ar úmido. Crianças choramingam suas fomes. O range-range das redes dá o tom de monotonia e tristeza ao ambiente. Homens e mulheres, amontoados no exíguo espaço, compartilham a sujeira e o enjoo do navio. O mar encapelado lambe os beiços de madeira do convés, respingando sua fúria salgada sobre aqueles desgraçados. Estão na costa do Maranhão, mar belo, cheio de arrecifes, traiçoeiro aos incautos, cemitério de trágicos naufrágios.
A rota da embarcação os leva a Manaus e daí, já por rio, em canoa, às selvas da Amazônia. Edificarão palafitas insalubres onde, resignadamente, a solidão e as agruras da floresta os espera. Todo dia, mal o sol abrir, entrarão na mata, em busca do precioso líquido branco ordenhado das seringueiras. Para sobreviver, terão de enfrentar índios, cobras, malárias, tifos e outras pestes mortíferas para, com sorte, fim de tarde, voltar vivo à morada nos barrancos de um solitário igarapé. Muitos morrerão. Uns poucos, bem-aventurados, retornarão ao torrão natal e deixarão aos seus descendentes as estórias vividas na epopéia da borracha. A terra que os acolherá será a mesma que os expulsou nos idos de 1915.
Seca feroz aquela. Só sobraram taperas, espetos e carcaças de bichos na terra cinzenta e quente. Pouco a pouco foi-se avizinhando, matando os pastos, derrubando as vacas desnutridas, secando o ar com redemoinhos, asfixiando os peixes nos açudes secos. Só sobraram juazeiros, mandacarus, macambiras, areia e pedra. Ninguém a esperava. A vida ali era dura, já eram acostumados ao estio, afinal Deus sempre os socorria. E, assim, ficaram aguardando o dia de São José, padroeiro das chuvas benfazejas. Mas, nada de chuvas. Apelaram aos donos de poder da terra adusta, certamente não faltariam às promessas fartas, pois sempre foram a eles submissos e leais. Mas, nada de chuvas, nada dos céus, nada da terra.
Sem recursos foram fugindo, no começo aos poucos, depois aos magotes. Triste retirada. Morriam aos montes pelos caminhos, de fraqueza, de fome, de sede. Movidos à raiz de mandioca, a mandacarú, a tejo, roendo as últimas espigas de milho, teimavam em continuar rumo ao litoral. Sobraram os mais fortes, ou os que o destino não quis. Em Fortaleza, habitaram campos de concentração, onde não os abandonaram a fome, as sujeiras, as doenças, o abandono, a morte.
Qual a ação do governo? O usual, livrarem-se das pestes, farrapos travestidos de gente. Exportá-los pra São Paulo, cidade sedenta de mão de obra, em cujas construções de tijolo e concreto, deixariam suas marcas de mãos calejadas. Mas, o mais comum destino era mesmo a mata virgem do Amazonas, em busca de borracha, destino incerto daquele punhado de miseráveis.
Hoje, 1997, em barracos de taipa cobertas de plastico preto, à beira da lama fétida, rica em excrementos, muitos dos descendentes do Quinze e do Amazonas ainda habitam a mesma miséria dos seus antepassados. Moram agora na capital, expulsos das terras quentes e áridas, onde penaram seus avós. Escravos dos ambientes promíscuos das favelas, da falta de educação e saúde, limitam-se ao entorpecer do álcool, enquanto aguardam um bico que lhes dê o sustento do dia. No rádio e na televisão, vêem e ouvem as  mudanças pra melhor que, insistentemente, tentam lhe convencer terem sido feitas pela nova geração de políticos-empresários. E, entre um gole e outro de aguardente, ouvem que o dia de São José deste ano foi sem chuvas. A seca virá novamente, mas o culpado foi finalmente descoberto: o El-Niño.

George Alberto de Aguiar Coelho
Escrito em 1997


Observo que hoje, 2012, a convivência com a seca, fenômeno cíclico, melhorou por aqui em relação a quando o texto acima foi escrito, 1997. Programas de transferências de renda, assistência técnica difundiu-se, incentivo às atividades que não existiam antes, interiorização da indústria, expansão da saúde para o interior com o SUS, programas de seguridade à agricultura, construção de cisternas rurais, grandes açudes, barragens subterrâneas e outros equipamentos, eletrificação rural, maior transparência   na gerência de recursos provocada pela ação fiscalizadora da sociedade e de órgãos controladores e tecnologias novas, a produção de alimentos em outras regiões a preços bem mais baixos do que  se tinha antes, evitaram, até agora, a repetição das cenas de fome, invasões e saques comuns no interior do Nordeste. Mas muito há de melhorar. O desmatamento crescente do bioma caatinga trazendo desertos ao sertão é uma vergonha. Corrupção desenfreada. Intermediação de recursos, por interesse político e enriquecimento pessoal, existe aos montes, aliada à imensa impunidade e lerdeza da justiça. E não se sabe bem o que ocorreria caso a seca de 2012 continuasse por mais tempo como fez, por exemplo, a pior das secas, a de 1877, a qual originou a primeira leva de multidão de cearenses aos seringais da Amazônia, seca infeliz que se prolongou por 3 anos seguidos.

George Alberto de Aguiar Coelho
Escrito em 16.06.2012

http://www.opovo.com.br/app/fortaleza/2012/06/13/noticiafortaleza,2858024/ceara-registra-6-seca-pior-seca-desde-1950-segundo-funceme.shtml

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