(Fez-se filmes duns livros de Rachel de Queiroz.
Eu quis cantar em versos uma crônica da escritora de Quixadá.)
A cavaleiro do alto, a casa foi situada.
Um alpendre de três metros, uma rede atravessada.
Logo depois vem a sala, de tijolo ladrilhada,
Tamborete, mesa e pano, bico de renda trançada.
Na camarinha um baú, mais outra rede armada,
Pra vivente se encolher, nos frios da madrugada.
O corredor e a cozinha, fogão de barro no canto,
Calendário na parede, mais uma estátua de santo.
Um pilão de aroeira, pouco ou nada desgastado,
Dois potes na cantareira, cor de barro avermelhado.
Correnteza de vento, um caneco floreado,
Atrás dum pote uma rã, coaxando no aguado.
A mão direita da casa, sobra uma garra de chão,
Pruns quatro pés de milho, entre as filas de feijão.
Dúzia de bode e ovelha, chiqueiro da criação.
Uma vaca dando leite, ordenha, cuia na mão.
Perto um açude fundo, pra apanhar água em cabaça,
Se banhar vendo marreca e grito de mergulhão.
Só dois anzóis pra pescar. O graúdo é pra traíra.
O miúdo é pro cará. Pra tirar muçum da loca,
E o mais que for pegar, serve isca de minhoca,
Que, na revência do açude, de enxada se escavar.
Nada de colheita rica, nem alambique de cobre,
Nem engenho de cana, nem curral de gado nobre.
O de comer na panela. Pouca coisa mata a fome,
Que quando o corpo dá pouco, muito pouco come o homem.
Força grande é pro roçado. Cercar com ramo espinhento,
De sabiá já sem folha, quando o mato tá cinzento.
Esperar primeiras águas. Abrir as covas, plantar.
Duas limpas de enxada. E o legume apanhar.
Só paz, silêncio e preguiça. O ar fino da manhã.
Dia inteiro sem pressa. Café quente da cunhã.
Um conhecido que chega. Vai contando novidade.
Bebe um caneco d´água. Sai andando pra cidade.
O terreno é só batido. O mato cresce sozinho.
Deus nasce ele em janeiro. Em julho, já tá sequinho.
Vai-se indo o dia inteiro, sem compromisso nem pressa
E de noite o candeeiro põe luz trêmula na conversa.
Se fala então do roçado, que cada qual tem um plano,
De marca de ferrar gado, de acampamento cigano,
Das sementes que se dão, melhor que outras no solo.
E a rede no alpendre, balança a gente no colo.
Se chover o açude sangra, capote tira ninhada,
Sobe o peixe o sangradouro, tem leite, queijo e coalhada,
Mofumbo se abre em flor, rebenta verde a babuge.
Em junho se quebra o milho, cheira o aguapé do açude,
Flora amarelo o pau d´arco, cheiro doce de mimosa.
Agosto seca a caatinga, paz do sertão gloriosa.
O céu é um todo azul. A terra fica cinzenta.
Gado vem beber nas horas. E a água fica barrenta.
Pasta o seco capim e solta triste mugido.
E no alpendre da casa, uma rede de vigília,
Em balanço sonolento. O alpendre é o abrigo.
A rede é o repouso. O açude é a garantia.
Muito embora aconteça que o verão passe janeiro,
Não se quebre o milho em junho. E só sobre o juazeiro,
Mandacaru pra dar rama, pro garrote e pra vaquinha.
Se não chover esse ano, se reza a Salve Rainha,
Pra que o chão não se acabe. Só do chão carece o homem.
Que no chão ele anda vivo. E é no chão que o verme o come.
George Alberto de Aguiar Coelho
Fonte: Um alpendre, uma rede, um açude. Rachel de Queiroz.
Cem crônicas escolhidas. O caçador de tatu.
José Olimpio Editora. RJ, 1989, p. 51 a 53.