sábado, 24 de março de 2012

O Papagaio



Hoje, 23/3/2012, Chico Anísio se foi. Pensei em homenageá-lo. Versejei então uma estória contada pelo gênio de Maranguape num livro escrito em 1977, portanto há 35 anos, pelo menos. Deu 24 versos. 
Chico Anisio foi universal. Como ninguém, soube explorar traços das pessoas que mais achava interessantes. Nisso, respeitava profundamente a diversidade de comportamentos, mesmo porque eram as fontes de sua criação. Assim, compôs 209 personagens bem distintos tirados do mundo real e do imaginário popular.
E, com meia dúzia de palavras, deu vida de gente ao papagaio da nossa estória. Tal como Graciliano Ramos fez a cachorra Baleia sonhar sonhos de preás em Vidas Secas. 

Seja do dono que for
Não gosto de papagaio
Não sou santo no balaio
E mando tomar no cu
Igual a raça do bicho
De penas: o papagaio.

Não sei se é a língua seca
Ou se é o bico bem virado
Ou se são os pés pra dentro
Malandro no caminhado
Eu só sei que eu não me dou
Com o louro palreado.

A gente tem o direito
E isso eu não discuto
De gostar de quem quiser
Mas desse pássaro astuto
Que faz o gosto do dono
Eu, só de ver, fico puto.

Dá o pé louro aqui
Vem meu louro pracolá
Raça alguma de vivente
A gente vai maltratar
Só o cão do papagaio
É osso de se aturar.

Mas meu patrão cria um
No casarão onde mora
Na rua Santos Dumont
Grande por dentro e por fora
Me mandaram entregar lá
Carta urgente, certa hora.

Cheguei na casa e toquei
Me atendeu a empregada:
“Cadê o patrão?” Falei seco
E a dona abusada:
“Peraí, que vem resposta,
Do patrão, escriturada”.

No alpendre, fiquei só
Me sentei no parapeito
E escutei uma voz:
“Veado”. Ouvi direito?
Não, não pode ser comigo
Que ser macho é meu defeito.

 “Veado”. Ouvi de novo
Olhei em procuração
O Senhor entende Dotô
A minha situação?
Não olhei em atendimento
Pra não dar confirmação.

Todo mundo tem seu gosto
Garanto pra Vosmicê
A coisa que é mais melhor
Pra cada um há de ser
Mas fela da gaita nenhum
Meu gosto vai destorcer.

E não tenho nada contra
De quem dá o que quiser
E é toda a natureza
Que diverge em muita fé
Só que sempre meu negócio
Desde sempre foi mulher.

Então vi o meliante
Mordendo taboca fina
Amarrado num poleiro
Se rindo da minha sina:
“Custou atender, Veado”.
Falou de novo o facínora.

Não sei nem se foi bem isso
O recado que me deu
Eu só sei que deixou claro
Que o baitola era eu
Mirei o cabra de asas
Danou-se. A raiva cresceu.

Parti pra cima do bicho
Pra lhe dar um safanão
Aí ouvi outra voz
Mais grossa. Era o patrão.
Me virei para o distinto
Por respeito e sujeição.

Mas o safado de asas
Numa quenga situado
Disparou a gritar:
“Veado. Ele é veado”.
Fez pouco de minha mãe,
Minha mulher! Delegado.

Esquentei as orêias
Senti o estômo embruiado
Que o bicho fez foi rir
Meu patrão! Seu Delegado
O home ria das besteiras
Do papagaio safado.

Foi muita, tanta mentira
Que saí estoporado
Até que o patrão ordenou
Pro tal amaldiçoado:
“Tá bom, meu Louro, por hoje,
Deixe o rapaz sossegado.”

Saí da casa do home
Ele rindo. Eu chateado
Não dormi naquela noite,
Até ver o clareado,
Ouvia a voz bem fanhosa
“Veado. Ele é veado”.

Mas não ficou nisso só
A minha expiação
Que eu tive depois de ir
No trabáio do patrão
Na rua Major Facundo,
Fortaleza de Assunção.

Eu não contei pra ninguém
Minha sofrida derrota
Mas meu patrão espalhou
E emendou mais lorota
Do fela da gaita da ave
Pro povim fazer chacota.

Chegava um e dizia:
“Ele te chamou de veado?”
Eu ia desconversando:
“Papagaio é inocentado”
E um sapecou a gritar:
“Quede o João Papagaiado?”.

Não gosto de apelido
Mais ainda se o nome
Me afilia ao mentiroso.
Cruz, Credo, Ôxe se some
Ave tão desinfeliz
Falta nada faz pro home.

De tanto eu ouvir calado
Me danei a divagar:
“Aquele peste me paga
Não custa nada esperar”.
E saí a meia-noite
Na forma de me vingar.

Da casa do meu patrão,
Escura, pulei o muro
Percurei o papagaio
Mas clareou-se o escuro
E a lanterna do vigia
Desclareou meu futuro.

Perdi então meu emprego
Me chamam de Joao Ladrão
Mas Delegado eu juro
Eu não ia roubar, não
Só enfiar u´a pimenta
No fundo do falastrão.

George Alberto

Sobre o genial Chico Anisio, no dia de seu falecimento, me emocionei com o depoimento de Lúcio Mauro, ator parceiro e seu mais antigo e fiel amigo, na Globo: “O Brasil perdeu um dos maiores artistas do mundo na arte mais difícil que é a arte de fazer rir”. O cearense Chico Anísio foi tão grande quanto Charles Chaplin. Um parêntesis: a mídia tá chamando o maranguapense de Chico Anysio, porém tenho três livros dele e em nenhum dos três existe este ipsilone, não. Minha homenagem pra ele são esses versos que fiz, no dia de sua partida, 23.3.2012, baseada numa estória que escreveu no livro de sua autoria: O Tocador de Tuba. Editora Rocco. 1977, págs. 64 a 67.
Fortaleza, 23 de março de 2012
George Alberto de Aguiar Coelho

Cearensês:
Alpendre = Varanda
Baitola = Veado
Balaio = Cesto de palha, de talo de carnaúba ou de cipó
Desclarear = Tornar menos claro
Desinfeliz = Infeliz
Dotô = Doutor
É osso = É difícil
Estômo embruiado = Estômago embrulhado
Estoporado = Estuporado
Fela da gaita = Fela da puta
Fela da puta = Filho da puta
Fez pouco de = Zombou de
Home = Homem
Ipsilone = Y
Mais melhor = Melhor
Orêias = Orelhas
Ôxe = Ôxente = Ó gente
Peraí, que vem resposta = Espera aí. porque vem resposta
Percurei - Procurei
Quede? = Que é de? = Cadê?
Quenga = Vasilha feita da metade do endocarpo de um coco
Sapecar = Bater
Trabáio = Trabalho
Vosmicê = Vossa Mercê = Você

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