Hoje, 23/3/2012, Chico Anísio se foi. Pensei em homenageá-lo. Versejei então uma
estória contada pelo gênio de Maranguape num livro escrito em 1977, portanto há 35 anos, pelo menos. Deu 24 versos.
Chico Anisio foi universal. Como ninguém, soube explorar traços das pessoas que mais achava interessantes. Nisso, respeitava profundamente a diversidade de comportamentos, mesmo porque eram as fontes de sua criação. Assim, compôs 209 personagens bem distintos tirados do mundo real e do imaginário popular.
E, com meia dúzia de palavras, deu vida de gente ao papagaio da nossa estória. Tal como Graciliano Ramos fez a cachorra Baleia sonhar sonhos de preás em Vidas Secas.
Seja do
dono que for
Não
gosto de papagaio
Não sou
santo no balaio
E mando
tomar no cu
Igual a
raça do bicho
De
penas: o papagaio.
Não sei
se é a língua seca
Ou se é
o bico bem virado
Ou se
são os pés pra dentro
Malandro
no caminhado
Eu só
sei que eu não me dou
Com o
louro palreado.
A gente
tem o direito
E isso
eu não discuto
De
gostar de quem quiser
Mas
desse pássaro astuto
Que faz
o gosto do dono
Eu, só
de ver, fico puto.
Dá o pé
louro aqui
Vem meu
louro pracolá
Raça
alguma de vivente
A gente
vai maltratar
Só o
cão do papagaio
É osso
de se aturar.
Mas meu
patrão cria um
No
casarão onde mora
Na rua
Santos Dumont
Grande
por dentro e por fora
Me
mandaram entregar lá
Carta
urgente, certa hora.
Cheguei
na casa e toquei
Me
atendeu a empregada:
“Cadê o
patrão?” Falei seco
E a
dona abusada:
“Peraí, que vem resposta,
Do
patrão, escriturada”.
No alpendre, fiquei só
Me
sentei no parapeito
E
escutei uma voz:
“Veado”.
Ouvi direito?
Não,
não pode ser comigo
Que ser
macho é meu defeito.
“Veado”. Ouvi de novo
Olhei
em procuração
O
Senhor entende Dotô
A minha
situação?
Não
olhei em atendimento
Pra não
dar confirmação.
Todo
mundo tem seu gosto
Garanto
pra Vosmicê
A coisa
que é mais melhor
Pra
cada um há de ser
Mas
fela da gaita nenhum
Meu
gosto vai destorcer.
E não
tenho nada contra
De quem
dá o que quiser
E é
toda a natureza
Que diverge
em muita fé
Só que
sempre meu negócio
Desde
sempre foi mulher.
Então
vi o meliante
Mordendo
taboca fina
Amarrado
num poleiro
Se
rindo da minha sina:
“Custou
atender, Veado”.
Falou
de novo o facínora.
Não sei
nem se foi bem isso
O
recado que me deu
Eu só
sei que deixou claro
Que o
baitola era eu
Mirei o
cabra de asas
Danou-se.
A raiva cresceu.
Parti
pra cima do bicho
Pra lhe
dar um safanão
Aí ouvi
outra voz
Mais
grossa. Era o patrão.
Me
virei para o distinto
Por
respeito e sujeição.
Mas o
safado de asas
Numa
quenga situado
Disparou
a gritar:
“Veado.
Ele é veado”.
Fez
pouco de minha mãe,
Minha
mulher! Delegado.
Esquentei
as orêias
Senti o
estômo embruiado
Que o
bicho fez foi rir
Meu
patrão! Seu Delegado
O home
ria das besteiras
Do
papagaio safado.
Foi
muita, tanta mentira
Que saí
estoporado
Até que
o patrão ordenou
Pro tal
amaldiçoado:
“Tá
bom, meu Louro, por hoje,
Deixe o
rapaz sossegado.”
Saí da
casa do home
Ele
rindo. Eu chateado
Não
dormi naquela noite,
Até ver
o clareado,
Ouvia a
voz bem fanhosa
“Veado.
Ele é veado”.
Mas não
ficou nisso só
A minha
expiação
Que eu
tive depois de ir
No
trabáio do patrão
Na rua
Major Facundo,
Fortaleza
de Assunção.
Eu não
contei pra ninguém
Minha
sofrida derrota
Mas meu
patrão espalhou
E
emendou mais lorota
Do fela
da gaita da ave
Pro
povim fazer chacota.
Chegava
um e dizia:
“Ele te
chamou de veado?”
Eu ia
desconversando:
“Papagaio
é inocentado”
E um
sapecou a gritar:
“Quede
o João Papagaiado?”.
Não
gosto de apelido
Mais
ainda se o nome
Me
afilia ao mentiroso.
Cruz, Credo,
Ôxe se some
Ave tão
desinfeliz
Falta
nada faz pro home.
De
tanto eu ouvir calado
Me
danei a divagar:
“Aquele peste me paga
Não
custa nada esperar”.
E saí a
meia-noite
Na
forma de me vingar.
Da casa
do meu patrão,
Escura,
pulei o muro
Percurei o papagaio
Percurei o papagaio
Mas
clareou-se o escuro
E a lanterna do vigia
Desclareou meu futuro.
Perdi
então meu emprego
Me
chamam de Joao Ladrão
Mas
Delegado eu juro
Eu não
ia roubar, não
Só
enfiar u´a pimenta
No
fundo do falastrão.
George Alberto
George Alberto
Sobre o
genial Chico Anisio, no dia de seu falecimento, me emocionei com o depoimento
de Lúcio Mauro, ator parceiro e seu mais antigo e fiel amigo, na Globo: “O
Brasil perdeu um dos maiores artistas do mundo na arte mais difícil que é a
arte de fazer rir”. O cearense Chico Anísio foi tão grande quanto
Charles Chaplin. Um parêntesis: a mídia tá chamando o maranguapense de Chico Anysio,
porém tenho três livros dele e em nenhum dos três existe este ipsilone, não. Minha homenagem pra ele são esses versos que fiz, no dia de
sua partida, 23.3.2012, baseada numa estória que escreveu no livro de
sua autoria: O Tocador de Tuba. Editora Rocco. 1977, págs. 64 a 67.
Fortaleza,
23 de março de 2012
George
Alberto de Aguiar Coelho
Cearensês:
Alpendre = Varanda
Alpendre = Varanda
Baitola
= Veado
Balaio = Cesto de palha, de talo de carnaúba ou de cipó
Desclarear = Tornar menos claro
Balaio = Cesto de palha, de talo de carnaúba ou de cipó
Desclarear = Tornar menos claro
Desinfeliz
= Infeliz
Dotô =
Doutor
É osso
= É difícil
Estômo
embruiado = Estômago embrulhado
Estoporado
= Estuporado
Fela da
gaita = Fela da puta
Fela da
puta = Filho da puta
Fez
pouco de = Zombou de
Home =
Homem
Ipsilone = Y
Ipsilone = Y
Mais
melhor = Melhor
Orêias
= Orelhas
Ôxe =
Ôxente = Ó gente
Peraí, que vem resposta = Espera aí. porque vem resposta
Peraí, que vem resposta = Espera aí. porque vem resposta
Percurei
- Procurei
Quede? =
Que é de? = Cadê?
Quenga
= Vasilha feita da metade do endocarpo de um coco
Sapecar
= Bater
Trabáio
= Trabalho
Vosmicê
= Vossa Mercê = Você
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