Hoje 28 de Abril é o dia da Caatinga. A Caatinga
é um bioma genuinamente brasileiro presente em 11% do território nacional com
uma população de 27 milhões de pessoas. Encontra-se nos estados de Alagoas,
Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Piauí,
Sergipe e Minas Gerais. Rico em biodiversidade, o bioma abriga 178 espécies de
mamíferos, 591 de aves, 177 de répteis, 79 espécies de anfíbios, 241 de peixes
e 221 de abelhas.
Pra lembrar o dia da Caatinga, transcrevo passagem do maravilhoso livro Os Sertões de Euclides da Cunha: As caatingas.
Pra lembrar o dia da Caatinga, transcrevo passagem do maravilhoso livro Os Sertões de Euclides da Cunha: As caatingas.
George Alberto
Fonte e leitura adicional:
http://www.codevasf.gov.br/noticias/2014/dia-nacional-da-caatinga-codevasf-investe-na-preservacao-do-bioma
Fonte e leitura adicional:
http://www.codevasf.gov.br/noticias/2014/dia-nacional-da-caatinga-codevasf-investe-na-preservacao-do-bioma
Caatinga no inverno piauiense. Foto: George Alberto
As caatingas
Então, a
travessia das veredas sertanejas é mais exaustiva que a de uma estepe nua.
Nesta, ao
menos, o viajante tem o desafogo de um horizonte largo e a perspectiva das
planuras francas.
Ao passo que
a caatinga o afoga; abrevia-lhe o olhar; agride-o e estonteia-o; enlaça-o na
trama espinescente e não o atrai; repulsa-o com as folhas urticantes, com o
espinho, com os gravetos estalados em lanças; e desdobra-se-lhe na frente
léguas e léguas, imutável no aspecto desolado: árvores sem folhas, de galhos
estorcidos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando rijamente no espaço ou
estirando-se flexuosos pelo solo, lembrando um bracejar imenso, de tortura, da
flora agonizante . . .
Embora esta
não tenha as espécies reduzidas dos desertos - mimosas tolhiças ou
eufórbias ásperas sobre o tapete das gramíneas murchas - e se afigure
farta de vegetais distintos, as suas árvores, vistas em conjunto, semelham uma
só família de poucos gêneros, quase reduzida a uma espécie invariável,
divergindo apenas no tamanho, tendo todas a mesma conformação, a mesma
aparência de vegetais morrendo, quase sem troncos, em esgalhos logo ao irromper
do chão. É que por um efeito explicável de adaptação às condições estreitas do
meio ingrato, evolvendo penosamente em círculos estreitos, aquelas mesmo que
tanto se diversificam nas matas ali se talham por um molde único.
Transmudam-se, e em lenta metamorfose vão tendendo para limitadíssimo número de
tipos caracterizados pelos atributos dos que possuem maior capacidade de
resistência.
Esta
impõe-se, tenaz e inflexível.
A luta pela
vida, que nas florestas se traduz como uma tendência irreprimível para a luz,
desatando-se os arbustos em cipós, elásticos, distensos, fugindo ao afogado das
sombras e alteando-se presos mais aos raios do Sol do que aos troncos seculares
de ali, de todo oposta, é mais obscura, é mais original, é mais comovedora. O
Sol é o inimigo que é forçoso evitar, iludir ou combater. E evitando-o
pressente-se de algum modo, como o indicaremos adiante, a inumação da flora
moribunda, enterrando-se os caules pelo solo. Mas como este, por seu turno, é
áspero e duro, exsicado pelas drenagens dos pendores ou esterilizado pela
sucção dos estratos completando as insolações, entre dois meios desfavoráveis -
espaços candentes e terrenos agros -as plantas mais robustas trazem no
aspecto anormalíssimo, impressos, todos os estigmas desta batalha surda.
As
leguminosas, altaneiras noutros lugares, ali se tornam anãs. Ao mesmo tempo
ampliam o âmbito das frondes, alargando a superfície de contato com o ar, para
a absorção dos escassos elementos nele difundidos. Atrofiam as raízes mestras
batendo contra o subsolo impenetrável e substituem-nas pela expansão irradiante
das radículas secundárias, ganglionando-as em tubérculos túmidos de seiva.
Amiúdam as folhas. Fitam-nas rijamente, duras como cisalhas, à ponta dos galhos
para diminuírem o campo da insolação. Revestem de um indumento protetor os frutos,
rígidos, às vezes, como estróbilos. Dão-lhes na deiscência perfeita com que as
vagens se abrem, estalando como se houvessem molas de aço, admiráveis aparelhos
para propagação das sementes, espalhando-as profusamente pelo chão. E têm,
todas, sem excetuar uma única, no perfume suavíssimo das flores , anteparos
intácteis que nas noites frias sobre elas se alevantam e se arqueiam obstando a
que sofram de chofre as quedas de temperatura, tendas invisíveis e
encantadoras, resguardando-as...
Assim disposta,
a árvore aparelha-se para reagir contra o regímen bruto.
Ajusta-se
sobre os sertões o cautério das secas; esterilizam-se os ares urentes;
empedra-se o chão, gretando, recrestado; ruge o nordeste nos ermos; e, como um
cilício dilacerador, a caatinga estende sobre a terra as ramagens de
espinhos... Mas, reduzidas todas as funções, a planta, estivando, em vida
latente, alimenta-se das reservas que armazena nas quadras remansadas e rompe
os estios, pronta a transfigurar-se entre os deslumbramentos da primavera.
Algumas, em
terrenos mais favoráveis, iludem ainda melhor as intempéries, em disposição
singularíssima.
Vêem-se
numerosos aglomerados em capões ou salpintando, isolados, as macegas,
arbúsculos de pouco mais de metro de alto, de largas folhas espessas e
luzidias, exuberando floração ridente em meio da desolação geral. São os
cajueiros anões, os típicos anacardia humilis das chapadas áridas, os cajuís
dos indígenas. Estes vegetais estranhos, quando ablaqueados em roda, mostram
raízes que se entranham a surpreendente profundura. Não há desenraizá-los. O
eixo descendente aumenta-lhes maior à medida que se escava. Por fim se nota que
ele vai repartindo-se em divisões dicotômicas. Progride pela terra dentro até a
um caule único e vigoroso, embaixo.
Não são
raízes, são galhos. E os pequeninos arbúsculos, esparsos, ou repontando em
tufos, abrangendo às vezes largas áreas, uma árvore única e enorme,
inteiramente soterrada.
Espancado
pelas canículas, fustigado dos sóis, roído dos enxurros, torturado pelos
ventos, o vegetal parece derrear-se aos embates desses elementos antagônicos e
abroquelar-se daquele modo, invisível, no solo sobre que alevanta apenas os
mais altos renovos da fronde majestosa.
Outros, sem
esta conformação, se aparelham de outra sorte.
As águas que
fogem no volver selvagem das torrentes, ou entre as camadas inclinadas dos
xistos, ficam retidas, longo tempo, nas espatas das bromélias, aviventando-as.
No pino dos verões, um pé de macambira é para o matuto sequioso um copo d'água
cristalina e pura. Os caroás verdoengos, de flores triunfais e altas; os
gravatás e ananases bravos, trançados em touceiras impenetráveis, copiam-lhe a
mesma forma, adrede feita àquelas paragens estéreis. As suas folhas ensiformes,
lisas e lustrosas, como as da maioria dos vegetais sertanejos, facilitam a
condensação dos vapores escassos trazidos pelos ventos, por maneira a
debelar-se o perigo máximo à vida vegetativa, resultante de larga evaporação
pelas folhas, esgotando e vencendo a absorção pelas radículas.
Sucedem-se
outros, diversamente apercebidos, sob novos aprestos, mas igualmente
resistentes.
As nopaleas e
cactus, nativas em toda a parte, entram na categoria das fontes vegetais, de
Saint-Hilaire. Tipos clássicos da flora desértica, mais resistentes que os
demais, quando decaem a seu lado, fulminadas, as árvores todas, persistem
inalteráveis ou mais vívidos talvez. Afeiçoaram-se aos regímens bárbaros;
repelem os climas benignos em que estiolam e definham. Ao passo que o ambiente
em fogo dos desertos parece estimular melhor a circulação da seiva entre os
seus cladódios túmidos.
As favelas,
anônimas ainda na ciência - ignoradas dos sábios, conhecidas demais
pelos tabaréus -talvez um futuro gênero cauterium das leguminosas, têm,
nas folhas de células alongadas em vilosidades, notáveis aprestos de
condensação, absorção e defesa. Por um lado, a sua epiderme ao resfriar-se, à
noite, muito abaixo da temperatura do ar, provoca, a despeito da secura deste,
breves precipitações de orvalho; por outro, a mão, que a toca, toca uma chapa
incandescente de ardência inaturável.
Ora, quando
ao revés das anteriores as espécies não se mostram tão bem armadas para a
reação vitoriosa, observam-se dispositivos porventura mais interessantes:
unem-se, intimamente abraçadas, transmudando-se em plantas sociais. Não podendo
revidar isoladas, disciplinam-se, congregam-se, arregimentam-se. São deste
número todas as cesalpinas e as catingueiras, constituindo, nos trechos em que
aparecem, sessenta por cento das caatingas; os alecrins-dos-tabuleiros, e os
canudos-de-pito, heliotrópios arbustivos de caule oco, pintalgado de branco e
flores em espiga, destinados a emprestar o nome ao mais lendário dos
vilarejos...
Não estão no
quadro das plantas sociais brasileiras, de Humboldt, e é possível que as
primeiras vicejem, noutros climas, isoladas. Ali se associam. E, estreitamente
solidárias as suas raízes, no subsolo, em apertada trama, retém as águas, retêm
as terras que se desagregam, e formam, ao cabo, num longo esforço, o solo
arável em que nascem, vencendo, pela capilaridade do inextricável tecido de
radículas enredadas em malhas numerosas, a sucção insaciável dos estratos e das
areias. E vivem. Vivem é o termo - porque há, no fato, um traço superior
à passividade da evolução vegetativa...
Euclides da Cunha