Não sei dar-me por inteiro, e quando
minha vontade me induz a optar por um partido não crio obrigações que contagiem
meu entendimento. Nas agitações que perturbam atualmente o país, meus
interesses não me fazem desprezar as qualidades louváveis de meus adversários,
nem ignorar os defeitos de meus correligionários. Em geral adoram tudo o que
fazem os seus; eu não desculpo sequer a a maior parte do que perpetram os meus;
uma obra não perde seus méritos só porque foi escrita contra mim. Salvo quanto à
razão essencial do debate (pois sou e continuarei católico), mantenho-me equânime
e indiferente: fora das exigências da guerra, não desejo nenhum mal a meus
inimigos. E com isso me alegro, pois vejo comumente assumirem atitude oposta: “abandona-se
à sua paixão quem não pode seguir à razão”. Os que estendem seu ódio além da
causa que o motiva, como costumam fazer os homens, mostram que defendem outra
coisa e por razões de ordem pessoal. Assim quando a febre persiste após a cura
de uma úlcera, tem-se a prova de que outra é a sua origem. Não se rebelam contra
a causa porque ofende os interesses coletivos e do Estado, mas sim porque
prejudica os seus próprios. Daí a animosidade pessoal, que ultrapassa o que
normalmente se entende por justiça. “Não concordavam todos em censurar todas as
coisas, mas cada qual censurava o que o interessava pessoalmente,” Eu desejo
ganhar mas não perco o juízo se assim não ocorre. Ligo-me ao partido que
sinceramente julgo o melhor, mas não procuro mostrar-me especialmente inimigo
dos outros e não ultrapasso o que a razão determina.
Michel Eyquem de Montaigne, político, filosofo, escritor e ensaísta francês (28.02.1533 -
13.09.1592)
Trecho extraído da obra Os pensadores. Montaigne. Tradução de Sérgio Milliet. Ed. Nova Cultural
Ltda., 1996, SP. Volume II, p. 313
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