domingo, 13 de outubro de 2013

Beto e os pés de jucá do Capitão Raimundo Inácio



Beto era um trabalhador da Fazenda Belmonte nos cafundós do Piauí. Beto gostava de cana. Não dos roletes de cana plantada na vazante do açude do Belmonte, cortados pra chupar na calçada alta, mas a cana destilada, das de queimar a goela em vez de adoçar. E ali, em outras eras, meu avô, Capitão Raimundo Inácio, fazia cachaça letrada Indiana, das do gosto do Beto. 

Um dia, foi bem depois do Capitão ter-se ido do mundo dos vivos, embora na Fazenda, dizem na redondeza, ele ainda tem presença assegurada pela patente de milícia popular. Não só meu avô, o povim conta, minha avó, Mocinha, mulher severa, também ali faz vigília. Pois bem, um dia Beto foi ordenado de limpar o cemitério caiado de branco, defronte pro lado direito da Fazenda, perto do açude construído com barro transportado em couro de boi e caçuá de jumento amolengado e pisado por retirante de seca. 

E Beto se empolgou com o trabalho da limpeza do cemitério de descanso dos  meus avós e dois tios. Talvez querendo agradar a ordenança, Beto cortou mais do que devia, descampando o cemitério. No inclusive, tinha uns pés de jucá plantados pelo meu avô desbastados até o toco. Findo o dia, Beto satisfeito toma mais uma e se encaminha pra casa grande. E vai se deitar logo à boca da noite, feito galinha no choco, que lá na Fazenda Belmonte não tem luz elétrica e o escuro desce cedo, quando não tem lua. E era uma noite sem lua. Beto já ouvira falar, pelo povim do lugarejo, que, de vez em quando, aparecia uns lampejos de lamparina e uns pisados de gente no andar de cima do casarão. Casa, construída em pedra larga e tábua de madeira fornida, que meu avô era homem de botar as coisas no mundo pra ficar de vera. 

Visagem, conversa de assombração? O Beto não dava bolas pra isso. Era coisa de gente que não tem o que fazer, inventavam até que na casa, tinha horas de tresandar um cheiro de café torrado  da Ibiapina. Conversa desse povo. Que nada! Deve de ser uns ratos passeando em riba das tábuas do piso. Ou um, ou outro morcego novato voando sem rumo, topando em parede, que a casa também tem sótão escuro depois do terceiro piso onde eles se dependuram de cabeça pra baixo. Eita mundaréu de casa! Beto só não arrumava explicação pro bruxuleado da lamparina, e pro cheiro do café, de que ele gostava de gosto verdadeiro. E apostava até, num rompante de coragem, se sentisse o cheiro, iria atrás de beber um gole viesse de onde viesse, com todo respeito do Capitão e dona Mocinha. 

E se deu que Beto foi pro descanso na rede armada no pé da escada de acesso ao andar de cima. Explico que quando meus avós eram vivos, só subia gente ali se fosse autorizada pra barrer o chão. Ninguém era besta de desagravar meu avô. Subisse, e o chiqueirador trançado de couro cru do Capitão comia de esmola no lombo do atrevido. 

E deitou-se na rede nosso Beto todo entoldado de cana, de cabo a rabo, e enfadado com a labuta do dia. Não teve ânimo nem de tomar um banho na porteira do açude próximo. Beto deu foi uma última bicada na aguardente, cuspiu do lado num urinó de alumínio, feito o Capitão fazia certeiro mascando fumo. E foi-se pro sono merecido no casarão. Sozinho o corajoso Beto mais a casa grande, que só carecia de dizer: tenha um sono merecido, Beto. 

Embalou no sono. Deve de ter roncado muito e quem sabe até tenha acordado foi com os roncos dele mesmo, sei lá o que se passou. Mas o Beto diz que acordou com uns passos fortes de piso rangendo no teto do quarto, e um fulgor de lamparina acesa com luz travessante nas frestas da madeira do teto. Beto levantou o lençol pra cobrir o rosto, não por medo, mas por precaução, e ficou espiando a visagem. Passou-se um tempo que pareceu cem anos, segundo Beto, desde quando ouviu umas batidas leves de caneca de alumínio lá em riba e um cheiro gostoso... não, gosto não sentiu, não... de café. Beto paralisado estava, parado ficou. Mais pior é que os passos começaram a descer na escada... tummm... tummm.... tummm. 

E o relógio de pêndulo da sala, bem de  longe, coincidência dessas coisas que acontecem, bateu também as horas. Nem deu tempo de contar as batidas, sei lá que horas eram. E a coruja, residente no sótão do casarão, piou. E os passos foram chegando. Beto fez que dormia. E bateram no punho da rede uma vez, duas vezes, assim como quem queria mesmo que Beto se acordasse. Que nada, Beto nem se mexia, nem se mexia... Mas, já no desespero, sentiu umas mãos grossas apertarem forte seu pescoço, estrangulando o apavorado Beto. 

"Pro que tu foi derrubar os meus pés de Jucá, Seu Patife?" 

Só deu tempo de ouvir uma vez a voz do Capitão. Beto, num átimo, pulou da rede com seiscentos diabos, saltou a janela, caiu escambichado da calçada alta, levantou-se feito o cão, resfolegou e saiu correndo havia mais de 7 km durante a noite escura até chegar no Alto Alegre donde nunca mais saiu, pelo menos na mira do Belmonte. E eu ouvi essa estória contada foi do Beto.

george.coelho@bol.com.br




7 comentários:

  1. Excelente texto George e lindas as fotos. O casarão ainda existe?

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  2. Olá George, Boa noite. Sou Antropóloga da UFG e estive na fazenda Belmonte hoje. Você sabe qual é a data de construção da fazenda? E se possível, será que poderíamos trocar um dedo de prosa sobre a história do Lugar? Grande abraço

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    1. Bom dia! Só hoje li seu comentário. Fico à sua disposição para informações que souber. A Fazenda Belmonte foi fundada por meus avós, Raimundo Inácio de Aguiar e Maria Elias de França Aguiar, na década de 1940, cearenses que, por 30 anos, antes de residirem no Piaui, labutaram no Acre. Meu avô era seringueiro e, criança, ouvi estórias que passou no seringal. No inicio, foram para o Acre, meu avô e irmãos. Depois de um bom tempo no seringal, meu avô casou-se com minha avó, sua prima, casamento encomendado de família, e ambos foram morar no Acre, onde nasceu minha mãe, Aldenora de Aguiar Coelho, na cidade de Feijó. A casa sede da Fazenda Belmonte, foi construída em 1948. Fica no município de São João das Fronteiras-Pi, desmembrado do município de Piracuruca-Pi.

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  3. Que lindo texto!! Amei cada palavra e fotos!! Faz me lembrar de minha infância na perfeita fazenda Belmonte. Aliás, até hoje faço parte dessa história. Meus avós e mais familiares ainda moram lá. E de certa forma, eu também. Estou lá toda semana. De todos meus lugares favoritos. Fazenda Belmonte estará em primeiro. Onde cresci sendo uma criança livre, amada e feliz!

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  4. Que texto lindo e cheio de verdade. Realmente visagem lá tem mesmo!De todos meus lugares favoritos a Fazenda Belmonte estará em primeiro. Foi lá que vivi minha infância feliz e amada!Tudo sobre a Fazenda me encanta. Sou grata por até hoje fazer parte desse belo lugar!meus avós e tios ainda hoje moram lá. E são lindas cada história que contam desde muito antes...amo ouvir. Fico apaixonada! Queria que ela fosse preservada. Penso que ficaria belíssima!!

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  5. Que texto bom de se ler George, morei um tempo por lá, afinal meus avós trabalharam pra eles e ainda meu avô trabalha por lá, tão bom ler algo e ver fotos de um lugar tão lindo como é o Belmonte.

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